domingo, 17 de abril de 2011


O “empate” político



Por RUDÁ RICCI


  1. De luta pelas florestas à luta pela sobrevivência política
O termo foi utilizado pelos seringueiros do Acre nos anos 1980. Chico Mendes jurava de pés juntos que a prática teve início em 1976. Os seringueiros faziam uma espécie de barricada humana e não deixavam as máquinas derrubarem as florestas. Quase sempre, as máquinas queriam abrir pastos para criação de gado. Era a inovação política dos povos da floresta. Ailton Krenac, que tive a honra de conhecer quando fui da Comissão Pró-Índio, chegou a sugerir apoio à luta dos seringueiros e pela preservação dos povos da floresta a partir de um boicote ao consumo de hambúrguer que, segundo ele, quase sempre era originário das pastagens que secavam as florestas. Sabemos que o boicote não foi muito além do segundo fast-food que uma criança avistou pela janela do carro.
Já o “empate” vingou em algumas reservas florestais e muitas ONGs ambientalistas que se instalaram pelo norte do país, principalmente o Acre.
O “empate” era uma espécie de tática pacifista, à la Gandhi. O corpo era utilizado como “discurso político”. Não convencia o oponente, muitas vezes um operador de máquina que não entendia nada de nada, além de hambúrguer.
Esta bela iniciativa, de quem não tinha muito mais que o corpo como estratégia de sobrevivência, virou um impasse político no país. Não, não estou me referindo que o “empate” dos seringueiros contaminou todo sistema partidário. É outro empate. Mas tão simbólico quanto o original. Se bem que um barbudo disse que quando a história se repete, aparece como farsa. E talvez seja verdade. O “empate” de hoje tem cheiro de chantagem política.
O fato é que o Brasil nunca foi tão governista como hoje. Governismo como sobrevivência política. Com o alto grau de concentração do orçamento público nacional na União (que abocanha entre 55% e 60% de todo erário público), fica impossível ser oposição. Talvez seja possível falar grosso se o gestor comanda um Estado com recursos para investimento. Um São Paulo, uma Minas Gerais. Não sei se passa daí. Rio de Janeiro, Paraná, Rio Grande do Sul, Bahia, Pernambuco, todos são Estados pujantes, mas com baixo nível de investimento sem as benesses federais. O que dizer dos prefeitos, que dependem sobremaneira do repasse do Fundo de Participação dos Municípios, convênios com a Caixa Econômica Federal e alguns ministérios? Impossível ser oposição.
Assim, a novidade política passou a ser a criação de partidos. Por um motivo simples: se sou deputado ou prefeito de um partido da base aliada do governo, entro na cota de benesses do meu partido. Se fico muito no final da fila de meu partido, não consigo grande coisa. Mas com um partido novo... volto a ocupar um lugar privilegiado na fila.
Pensemos em outra situação. Sou liderança de uma cidade política ou economicamente importante. Mas meu partido é aliado de um governador que é oposição ao governador federal. Este governador é poderoso, mas eu ainda necessito de ajuda federal. O que fazer? Criar um novo partido, aliado dos dois. Resolve, não?

  1. Ausência de federalismo financeiro

Marta Arretche já havia se notabilizado pelos estudos sobre o processo de descentralização de políticas sociais no Brasil, apelidado de municipalista das políticas públicas. Seu estudo demonstrou que o municipalismo só ocorre com benesses de governos estaduais e federais aos entes federativos de base, os municípios. Sem apoio e incentivo dos de cima, os de baixo não aceitam as gerir as políticas públicas essenciais do país. Não é mero desejo de aumentar o orçamento local. É falta de capacidade de formulação de políticas públicas.
Criamos, assim, um círculo vicioso em que o municipalismo torna-se uma espécie de “ilha da fantasia”. Ora, segundo Lijphart, “Estados federativos podem ser definidos como “uma forma particular de governo dividido verticalmente, de tal forma que diferentes níveis de governo têm autoridade sobre a mesma população e território”. No nosso caso, algo mais complexo e diferenciado. Mesmo porque, parte do processo de descentralização de políticas sociais brasileiras foi induzida desde fora, pelo Banco Mundial, que passou a adotar um outro referencial de gestão a partir de 1993.r
Nosso pacto federativo é viciado e desequilibrado. Política e financeiramente.
O conceito de federalismo financeiro sugere que o financiamento de determinado bem púbico incumbe ao nível financeiro que melhor represente o universo dos beneficiários dessas políticas – este é o princípio adotado pelo Banco Mundial a partir de meados dos anos 1990 – porque se aproxima dos interesses e demandas dos cidadãos e diminui o desperdício de recursos, além de ser mais fácil de ser controlada socialmente.
Mas não é isto que ocorre no Brasil. Poderia citar uma lista interminável de autores que sustentam que o que ocorre é o inverso do que nossa Constituição de 1988 sugere: o centralismo do orçamento público. Angela Santos, Laís Costa e Thompson Andrade (UERJ e Associação Brasileira de Secretarias de Finanças das Capitais) já demonstraram a via crucis de prefeitos de cidades médias (muito melhor, por sinal, que a dos prefeitos de cidades pequenas).
Para os autores

“Um diagnóstico predominante entre os analistas da descentralização no Brasil é de que esta teria sido apenas um movimento de municipalização das receitas., sem o devido planejamento da descentralização dos encargos entre os entes da federação [ver Afonso et alii (1998)]. Nessas condições, urge estabelecer um pacto federativo que defina com maior clareza atribuições de funções e fontes de financiamento apropriadas a cada ente da federação brasileira. Ainda que se tenha verificado uma expansão da receita municipal bastante superior à das receitas federais e estaduais, o crescimento dos encargos municipais em investimentos públicos encontra restrições relativas às fontes de financiamento, dada a ainda inexpressiva arrecadação local no país. O que é relevante aqui é a observação de que, ainda que em termos agregados o volume das receitas municipais tenha se elevado bastante, tais médias escondem grandes variações observadas entre os mais de 5 mil municípios existentes no país espalhados por regiões geoeconômicas, com marcantes diferenças em seu desempenho econômico. Assim, por exemplo, de uma amostra de 4.629 municípios instaladosem1996 e para os quais havia disponibilidade de dados, mais da metade (2.440) só arrecadava tributos num valor inferior a R$ 10 per capita. Dos 2.143 que contavam com receita tributária superior a R$ 10 per capita, 1.792 localizavam-se nas regiões Sudeste e Sul. Ademais, nas grandes cidades os resultados tendem a ser explicados pela modernização fazendária (...) “

A arrecadação concentra-se nos grandes municípios, em especial, as capitais dos Estados. Tal situação impele, em virtude da facilidade de arrecadação, os municípios a terem no ISS uma fonte de receita própria superior ao IPTU. Mesmo porque, gera menores conflitos locais que o imposto predial e territorial progressivo, como sugerido no Estatuto da Cidade.
Os municípios médios são mais dependentes do ICMS, como fonte de receita, que do FPM, situação que se inverte na medida em que os municípios brasileiros têm população menor.
A tabela reproduzida a seguir, produzida por Ângela Santos e outros, sugere como as capitais estaduais possuem maior autonomia financeira que as cidades médias, em virtude das atividades econômicas que geram ISS se localizarem justamente nestes municípios.



Concentração orçamentária é sinônimo de dependência política. Esta é a fonte do “empate”.

  1. O “empate” político

“A insatisfação da base aliada com o Palácio do Planalto extrapolou os bastidores e começa a se traduzir em votações no Congresso, transformando o ministro da Casa Civil, Antonio Palocci , em alvo das reclamações”. Este texto está no início da matéria publicada na Folha de São Paulo (p. A10) de 16 de abril de 2011.  A matéria citada as causas do PMDB, que governa o país com o PT, ter rejeitado a proposta governamental do trem-bala (63% dos senadores peemedebistas). O tema aparente é a quantidade imensa de emendas parlamentares represadas e a promessa de mais corte até o final do ano. Mas não só. Trata-se um jogo de acomodações de forças no interior do governo. Um governo cuja base política se amplia a cada dia. Os espaços são cada vez mais diminutos, mas a ânsia por ser governista parece não ter fim. 



Já em terras mineiras, o contido e técnico Antonio Anastasia nomeou o ex-deputado federal mineiro Edmar Moreira (PR), conhecido como o deputado do castelo, como diretor vice-presidente da Minas Gerais Participações S.A. (MGI), empresa de economia mista vinculada à Secretaria de Estado da Fazenda. O que o teria motivado tal deslize, que se transformou num rastilho de pólvora que deliciou oposicionistas e imprensa mineira, obrigando-o a recuar logo depois?

E Geraldo Alckmin, governador paulista? O que motivaria nomear diretores e dois meses depois solicitar os mesmos cargos para nomear gente que nem é de seu partido?



Os três casos têm uma situação em comum: o “empate político”.
A concentração orçamentária, motivada por uma crença ideológica na capacidade quase exclusiva da União em orientar o desenvolvimento do país, além de um desenho conservador de concentração de investimentos produtivos em regiões metropolitanas, resulta numa evidente quebra do pacto federativo brasileiro.
Municípios menores (a grande maioria) e governos estaduais com menor pujança financeira se movimentam, por instinto político, na direção do governismo. Em caso dos prefeitos cujos municípios se localizam em Estados com capacidade de investimentos, mas que cujo governador se opõe ao governo federal, a criação de um novo partido parece ser a saída mais sábia. Porque, assim, podem se realinhar, se tornando base política de governos que são oposicionistas.
Mesmo nos casos em que a dependência maior do município seja com o governo federal, criar um novo partido o recoloca na fila de acordos e benesses. Porque os benefícios seguem uma lógica de acordos próxima ao sistema de lista fechada em um processo eleitoral: os mais fortes tomam os melhores benefícios e os que se situam na base desta escala nem sempre são contemplados. Na medida em que formam um novo partido, ressurgem na escala de acordos com o governo muitas vezes em situação mais privilegiada. Resultado do “empate” político. O que exige de governos centrais e poderosos o realinhamento de distribuição de cargos e benefícios.
A roda gira permanentemente, sem novidades aparentes para os cidadãos, mas recolocando e realinhando pequenas lideranças locais no campo dos acordos entre entes federativos. Acordos que exigem custos altos. Perda constante de autonomia dos entes federativos mais frágeis e gigantismo dos entes federativos mais fortalecidos.

Na prática, a mobilidade política e programática é quase nula. Nenhuma das partes se move – a não ser criando novos partidos – o que alimenta o "empate". Empate era estratégia de sobrevivência dos seringueiros. Tenho a impressão que se tornou estratégia de sobrevivência de políticos e entes federativos do baixo clero, multiplicando os casos envolvendo o governo federal na montagem de um quebra-cabeça confuso. Não há cargo para todos governistas. E mais gente entra na fila a  cada dia.
Alguns sugerem que o Brasil se peemedebiza (partidos sem fundamento programático, mas com força política numérica que os garante nas esferas de poder) e os espaços de ocupação são cada vez menores para quem não é notável, ícone nacional. Prefeitos, deputados, senadores e governadores de Estados com poucos recursos para investimento, todos desejam ser governistas. O “empate” desmantela nosso sistema federativo, distancia representantes de representados, cria situações de poder real definidos em salas fechadas.

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