MUDANÇAS NO JEITO MINEIRO DE FAZER POLÍTICA
Por RUDÁ RICCI
- A tradição política mineira
A política mineira começa a mudar. Vivo há 20 anos nessas terras, migrante de São Paulo, e já confessei algumas vezes que não conseguia entender o jeito mineiro de fazer política. Demorei quase uma década para compreender sua lógica. Porque por aqui não se faz política à luz do sol. O mundo privado contamina todos discursos e práticas. Por este motivo, nem sempre os atos públicos mais efervescentes revelam o real peso político e dinâmica dos atores sociais. Quem não é mineiro não entende os motivos de quem tem visibilidade, não raro, perder uma eleição. Como explicar os motivos do ex-Ministro Patrus Ananias dirigir o programa mais exitoso e com maior impacto eleitoral do governo Lula e acabar no ostracismo?
Desde que me instalei no interior das montanhas mineiras fui compreendendo que aqui se faz uma política feminina. Muitas feministas me disseram que esta análise pode indicar uma naturalização do comportamento político das mulheres. Mas esta nunca foi minha intenção. O que procurava afirmar é um “tipo ideal”, ao estilo weberiano, um recurso didático para diferenciar práticas que, como o nome sugere, é uma idealização. Weber já alertava para as ressalvas no uso deste recurso: muitas vezes, os tipos ideais se embaralham na prática social. Mas o recurso auxilia a compreender elementos que compõem a lógica política.
O que seria, então, feminino na prática política mineira? Primeiro, entendamos a tradição econômica. Em vários ciclos econômicos mineiros – mas o mais importante parece ter sido o fluxo dos tropeiros – as mulheres ficavam meses administrando sua família. No Vale do Jequitinhonha até hoje se ouve falar das “viúvas de maridos vivos”. O último ciclo que provocou tal diáspora foi o da cana-de-açúcar que atraiu tantos homens para a colheita na região de Ribeirão Preto, a Califórnia Brasileira, durante ao menos seis meses no ano.
Lembremos, ainda, da lógica muito recente do mineiro migrante. A capital mineira possui 114 anos somente e provocou um forte fluxo migratório para toda região metropolitana, transferindo funcionários – e, logo depois, suas famílias – de Ouro Preto. Há registros que até hoje os hábitos alimentares de alguns municípios desta região (caso de Betim) são fortemente marcados pela cultura rural, interiorana. Não por outro motivo, os jornalistas e literatos mineiros mais conhecidos não residiam ou residem em seu Estado de origem. Os mineiros, em especial os homens, sempre se viram enredados em processos migratórios.
Por este motivo, por essas bandas se fala, ao pé do ouvido, de tantos homens que possuem mais de uma família. E, em vários casos, todos se conhecem.
Daí a mulher ter uma presença no mundo privado extremamente destacada. Sempre foi a chefe de fato das famílias. O que gerou uma adaptação ou mutação do machismo brasileiro.
Em terras mineiras, são os homens que comandam a vida pública. Mas as mulheres possuem um forte domínio na vida privada. A violência doméstica permanece como no restante do país. Mas à mulher cabe uma voz ativa em relação ao cotidiano familiar e até mesmo às escolhas de investimento. Esta foi uma das surpresas quando iniciei minhas pesquisas no meio rural mineiro. Sempre que perguntava sobre os projetos de investimentos, o pretenso chefe da família convidava sua esposa para responder. Em todos estratos sociais rurais a situação se repetia. Ouvi da esposa de um ex-Secretário Estadual da Agricultura que ela tinha orgulho de ser fazendeira. Mandava com orgulho. E o marido, ao lado, quieto.
Ora, não há como negar que esta proeminência contribuiu para a formação de muitas gerações de homens que se projetaram na vida pública, espaço interditado pelo peculiar machismo mineiro.
A política mineira é claramente marcada por esta lógica que nasce da dinâmica familiar. A ação predominante é particular, privada, com conversas e acordos reservados e ausência de violência ou agressão direta e pública entre adversários. Ao contrário, o chiste, o espaço para recomposição, a guerra de posição parecem os elementos centrais desta prática.
Assim, um segundo elemento central da política mineira, decorrente desta lógica e tradição é a feudalização territorial e as reservas políticas. A máxima “Minas são muitas” orienta esta lógica. Minas se recorta em lógicas distintas, econômicas, sociais e culturais. Do Cerrado ao oeste do agronegócio, do sul paulista à Zona da Mata fluminense, do norte e nordeste incorporado à dinâmica nordestina, do núcleo siderúrgico do Vale do Aço à região metropolitana de BH. São regiões compartimentadas que criam uma federalização em muitos casos próxima da estrutura espanhola. Obviamente que a política assumiu os mesmos contornos culturais. Aécio Neves aprofundou esta concepção e estruturou seu staff político a partir de eleitos e emissários regionais. Daí a liberdade que tinha para anunciar apoios públicos que não se realizavam de fato nas regiões, dada a orientação contrária para que os seus emissários se mobilizassem nos acordos territoriais. As eleições de Lula e Dilma Rousseff, não por acaso, foram ancoradas, em Minas Gerais, pelos comitês “Lulécio” (Lula e Aécio Neves) e “Dilmasia” (Dilma e Antonio Anastasia), em campanhas semi-públicas casadas para Presidência da República e Governo Estadual.
A prática dos deputados estaduais segue a mesma orientação, independente da agremiação. Em Minas Gerais, mais que em qualquer outro Estado da federação, deputados esquadrinham seu campo de atuação e os prefeitos a ele vinculados. Prefeitos, por sua vez, se articulam com deputados de diversos partidos que tem em sua região um eleitorado cativo. A territorialização cria, assim, uma lógica e hierarquia política peculiares, que transversaliza partidos e supera ideologias.
Um terceiro elemento de tradição da política mineira é a cultura do planejamento. Parece uma contradição com as características anteriores, de tipo pós-moderno. Este, não por acaso, é um tema recorrente nas pesquisas acadêmicas mineiras: a relação entre tradição e modernidades. Trata-se do hibridismo mineiro, a entrada da modernidade que se sobrepõe às tradições da fragmentação mineira. Alguns chegaram a trabalhar estilos dicotômicos que se complementam (paradoxalmente) intitulados como mineiridade (moderno e ousado) e mineirice (tradicional e matreiro).
Na esteira da modernidade é possível destacar, na tradição da política mineira, o papel do Colégio Caraça, constituído a partir dos padres lazaristas. Afonso Pena e Artur Bernardes estudaram neste colégio afastado de tudo, no alto de uma serra. Muitos de seus alunos se elegeram governadores, senadores e deputados, além de altas autoridades eclesiásticas. Ainda no século XIX, o colégio foi visitado por dom Pedro I e Dom Pedro II. Em 1968 o colégio foi incendiado e só foi restaurado em 2002, perdendo a projeção que tinha na formação da elite política mineira. Mas a concepção desenvolvimentista e humanista já estava lá registrada.
Também merece destaque a fase logo após a II Guerra Mundial em que o governo estadual mineiro inaugurou a fase de planejamento induzido pelo Estado. No governo Milton Campos (1946-1950) lançou o modelo desenvolvimentista com o Plano de Recuperação Econômica e Fomento da Produção. O mais conhecido governador que assume esta orientação foi Juscelino Kubitschek, base para, mais tarde, formular o Plano de Metas. O fato é que nas décadas de 1950 e 1960 os governos mineiros procuraram organizar a intervenção e orientação da sua economia, focado no fomento do crescimento industrial acelerado. Nos anos 1970 vieram os Planos Mineiros de Desenvolvimento Econômico e Social (PMDES). O primeiro, de 1970, durante o governo Rondon Pacheco. O segundo, durante a gestão Aureliano Chaves. E, finalmente, o terceiro, implantado pelo governo Francelino Pereira. Tancredo Neves e Newton Cardoso também elaboraram seus PMDES, mas já sem a ênfase numa lógica sistêmica de desenvolvimento e planejamento.
A crise mundial que se irradiou no final dos anos 1970 e impactou os investimentos externos no Brasil foram corroendo este modelo mineiro de intervenção estatal fortemente orientado pelo intervencionismo e no dirigismo.
Contudo, todos estes traços da cultura política mineira se alteraram nos últimos oito anos. Gradativamente, como convém aos mineiros.
- O que se mantém e o que mudou
Se a fragmentação territorial ainda se mantém, todos os outros traços da tradição da ação política mineira se alteraram na última década. Na verdade, a territorialização foi apropriada pela nova lógica, sofrendo um aggiornamento. Agora se constitui em palcos de ação coordenada de adversários políticos, em especial, petistas e tucanos. O conflito partidário se dá a partir desta tabuleiro esquadrinhado, uma espécie de “batalha naval” em terra firme.
Mas, afinal, o que mudou?
Mudou o código moral da ação política. Um código fundado no costume, na tradição comunitária. O comunitarismo possui um marco rural, fundado na interdependência, no compadrio, nos laços afetivos entre vizinhos. É emoldurada pela identidade pessoal que se espelha na do grupo que conhece. Em outras palavras, as histórias e experiências pessoais se cruzam e se reafirmam em grupos pequenos, em que todos se conhecem e onde os valores e moral são forjados. A identidade individual é a identidade comunitária. Daí os espaços privados se confundirem, a intimidade freqüentemente invadida e avaliada, constituindo o que João do Rio denominou, tempos atrás, de “cultura janeleira”.
Na última década, contudo, com a emergência de Minas Gerais como segundo pólo político do país, disputando muitas vezes com São Paulo, o enfrentamento entre os partidos líderes (PT em termos nacionais e PSDB em termos regionais) masculinizou a prática política.
Os conflitos parecem mais abertos. O estilo Eduardo Azeredo e Pimenta da Veiga foram substituídos pelo estilo Aécio Neves e Danilo de Castro. O estilo Patrus Ananias, por seu turno, foi substituído pelo estilo Fernando Pimentel. A sucessão tucana e petista em Minas Gerais deu lugar a uma agressão pública inédita que aumentou de intensidade com o final do governo Aécio. Isto porque Lula e Aécio Neves mantiveram acordos velados durante os oito anos que governaram o país e o Estado. Em 2011, com o caminho aberto para Aécio Neves se projetar nacionalmente, o acordo tácito se dissolveu. A partir daí, o confronto chegou ao seu ápice.
A Assembléia Legislativa foi, até o momento, o palco prioritário de explicitação do conflito aberto, inaugurado pela atuação do bloco oposicionista Minas Sem Censura (PMDB, PT e PCdoB), sob a liderança do deputado petista Rogério Correia. Veio a resposta com a articulação e assédio dos tucanos em várias regiões de Minas Gerais, atraindo lideranças sociais e vice-prefeitos e, recentemente, criando a ala sindical do partido (uma importante inflexão da história tucana) com a filiação em massa de sindicalistas vinculados à Força Sindical.
Assim, a territorialização política foi recomposta. Agora não existe mais respeito aos “donatários políticos” de cada região. Ao contrário, os territórios definem estratégias de ação entre partidos adversários que se movimentam neste terreno procurando arregimentar lideranças locais – agora com filiação direta e formação de grupos de apoio – e definindo políticas de incentivo ás alianças a partir das políticas públicas. Não há mais o famoso cuidado mineiro, as ações reservadas.
Finalmente, um elemento parece banido da lógica política mineira em função do aumento do conflito aberto entre partidos hegemônicos: o planejamento e orientação ao desenvolvimento a partir do governo federal.
Após a crise aberta de 1977 (com queda de financiamento a grandes projetos) e o quase desmonte de sistemas operacionais governamentais (como o da agricultura mineira) no final dos anos 1980, Minas Gerais foi substituindo a lógica orientadora pela adoção de controles de tipo empresarial na gestão pública. Não se trata apenas de um modelo internacional assimilado e reproduzido. Não se trata de puro mimetismo. Há um elemento de transformação da cultura política regional. A política, enfim, sobrepujou a economia. Em outros termos: a economia foi aparelhada pela política partidária. O que fez do mapa de investimentos um mosaico que se movimenta, há alguns anos, ao sabor dos ventos, das leituras exclusivamente realizadas pelos agentes econômicos a respeito das oportunidades de negócios e procura de situação que baixem seus custos de produção. Minas conforma, assim, um mosaico de investimentos que não se articula numa lógica estadual. O sul mineiro é um excelente “case” que demonstra o impacto desta omissão estatal: de produtor clássico de café e leite, responsável por 30% da produção nacional, se transforma aceleradamente, em função de investimentos chineses e outros, em região industrial e de serviços de alta tecnologia. O impacto sobre a atração de fluxos migratórios e sobre a oferta de serviços não é objeto de nenhum estudo ou ação preventiva.
Não existe coordenação ou leitura global das mudanças econômicas em curso. A agricultura familiar do sul e Zona da Mata se desloca lentamente para as fronteiras do Estado com o centro-oeste. Alguns pesquisadores afirmam que em trinta anos as regiões norte e nordeste do Estado sofrerão com a desertificação de grande parte de seu território.
A disputa partidária aberta e pública acaba por atrair investimentos que, se por um lado, superam problemas sociais, não se vinculam a estudos de impacto e não compõem um mesmo projeto estratégico de desenvolvimento. Governo federal e governo estadual travam duelam para conquistar almas e mentes de eleitores e financiadores regionais das campanhas partidárias.
Assim, o hibridismo entre tradição e modernidade mineiras acabou por dar lugar ao predomínio da ação política sobre a lógica social e econômica. Minas, mais que nunca, são muitas. Mas se antes esta constatação carregava um charme literário, agora resvala perigosamente na formação de uma arquitetura gótica, cujo melhor representante é Frankenstein, o moderno Prometeu .
Sociólogo, doutor em Ciências Sociais, Diretor Geral do Instituto Cultiva. Comentarista de política da Band News FM BH
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